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terça-feira, 26 de outubro de 2010

INDO

Desde sempre eu possuo o hábito de imaginar como se sente a pessoa que encontra-se em fase de transição para a velhice, se é que essa fase existe. Creio que existe, mas é praticamente imperceptível. Quando se vê, se está do lado de lá. Nada melhor do que o humor sutil de Luís Fernando Veríssimo nessa crônica pra ilustrar esse fato.

"Curiosa palavra. Idoso. O que acumulou idade. Ou que a esbanja (como gostoso ou dengoso)

O primeiro sinal foi quando uma senhora se levantou para me dar seu lugar, num ônibus. Ué, pensei. (Não sei se foi “Ué”. Pode ter sido “Uai”, mas estranhei). O que provocara aquele gesto? O que levara a mulher a me oferecer seu lugar? Era a primeira vez que me acontecia aquilo. Alguma coisa ela vira em mim que a convencera que eu não deveria ficar de pé. O que seria? Recusei a oferta.“Não, não. Eu estou bem. Obrigado.” Mas fiquei intrigado. De pé e intrigado.

A partir daí, passei a notar que as pessoas me tratavam de um modo diferente. Não era raro alguém estender a mão para me ajudar a descer de um carro, por exemplo. Por que aquela súbita mudança de comportamento das pessoas em relação a mim, já que eu continuava sendo o mesmo de sempre? Em mim nada mudara. Bem, algumas coisas sim, mas detalhes, nada que justificasse o estranho procedimento dos outros. E o que quer que fosse que o provocara, o novo tratamento não era de repulsa. Pelo contrário, era de uma amabilidade inédita. Por quê?

Cheguei a desenvolver algumas teorias. As pessoas teriam ouvido algum boato a meu respeito. Uma herança recebida, um tesouro descoberto, um bilhete premiado, algo que tornaria eventualmente vantajoso me tratarem bem. Mas isso não explicava a senhora do ônibus, uma desconhecida, sem qualquer expectativa de um dia ser recompensada pela sua gentileza. Ou os repetidos gestos de deferência de outros desconhecidos – até de bilheteiros, nos cinemas, me perguntando, por alguma razão, se eu queria um ingresso com desconto. O fato é que todos agiam como se soubessem alguma coisa a meu respeito que eu mesmo desconhecia.

Talvez... Seria isso? Talvez, como naquelas fotos em que alguém ergue dois dedos atrás da sua cabeça e você fica com chifres sem saber, todos vissem sobre a minha cabeça algo que eu não via, um halo, um sinal, mostrando que eu era um iluminado ou um condenado. De uma hora para outra eu me transformara misteriosamente num distinguido pelo alto ou pelo destino, objeto de reverência ou comiseração. Ou, claro, de um grande mal-entendido. Era isso. Só podia ser isso. Eu não me tornara nem mais rico nem mais simpático. Me tornara especial aos olhos dos outros, e o que eu tomava como gentileza era apenas espanto. Ou pena.

Finalmente, na semana passada, tudo se esclareceu. Cheguei ao Rio, e o táxi que me levava do aeroporto para o hotel pifou na saída do Túnel Rebouças e parou na ensolarada Lagoa. O motorista pediu ajuda a outro táxi pelo rádio e enfatizou a urgência da situação: “Estou aqui com um idoso embaixo do sol...”. Olhei em volta. Idoso? Onde estava o idoso? E então tive a revelação. O idoso era eu! Agora tudo fazia sentido. O estranho procedimento dos outros estava explicado. Eu tinha me transformado num idoso e recebia o tratamento adequado. Virar idoso é o que acontece quando se vive um certo tempo, eu apenas não tinha me dado conta. Só faltava alguém dizer a palavra, sem a menor possibilidade de estar se referindo a outra pessoa.

Curiosa palavra. Idoso. O que acumulou idade. Também tem o sentido de quem se apega à idade. Ou que a esbanja (como gostoso ou dengoso). Se é que não significa alguém que está indo, alguém em processo de ida. Em contraste com os que ficam, os ficosos...

Preciso começar a agir como um idoso. Dizem que, entre eles, idosos não falam em quem chega à velhice como alguém que está à beira do túmulo. Dizem que está na zona do rebaixamento. Vou ter que aprender o jargão da categoria."

Rafa

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