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segunda-feira, 5 de julho de 2010

PICASSO E GOYA SOB O SOL

da série: 'Diálogos Impossíveis'

As Meninas - Diego Velásquez, 1656 - Museu do Prado - Madri

Uma tarde, depois de um bom almoço, estirado numa cadeira preguiçosa no terraço da sua casa na Côte DAzur, Picasso adormece e sonha que está no museu do Prado, em Madri, na frente do quadro As Meninas, do Velázquez, e que ao seu lado está alguém que a princípio ele não reconhece. Ele e o outro são as únicas pessoas no grande salão do museu onde a pintura de Velázquez é o único quadro. A pintura de Velázquez é o único quadro no museu inteiro.

Picasso julga reconhecer o homem ao seu lado, mas não tem certeza de que seja quem está pensando.

– De onde eu conheço o senhor?

– Talvez dos meus autorretratos...

– Francisco Goya!

– Em pessoa. Ou o que resta dela. E o senhor é...

– Pablo Picasso.

– Foi o que eu desconfiei. Mas nos seus autorretratos o senhor nem sempre é reconhecível...

– É que eu nunca aceitei que os dois olhos não pudessem ser do mesmo lado do nariz.

– Mas eu deveria ter lhe reconhecido pelas fotografias. O senhor é uma das pessoas mais fotografadas do mundo. Eu o invejo.

– Por ser tão fotografado?

– Não. Por poder pintar os dois olhos no mesmo lado do nariz. E a boca onde quiser. E os pés no lugar das orelhas. Eu não tive essa liberdade. Fui um revolucionário na minha arte, mas não o bastante. Éramos reféns da anatomia. O senhor se libertou disso.

– Me diga, o que o senhor acha dessa ideia de esvaziar o Prado e deixar só As Meninas, do Velázquez em exposição?

– Acho justo. É uma maneira de dizer que, depois de Velázquez, toda a pintura é supérflua.

– Mas as suas pinturas negras também foram banidas do museu, com todas as outras..

– Está certo. Eu não as pintei para serem expostas. Foram pintadas nas paredes da minha casa, para só serem vistas por mim. São expressões da minha misantropia, do meu asco pela vida, da minha loucura final. Quem quer ver a sua degradação exposta em público?

– Elas são as pinturas mais poderosas e inquietantes jamais feitas. E olha que eu não sou de elogiar a concorrência.

– O seu Guernica não fica atrás...

– Obrigado, mas eu acho Guernica uma ode à inutilidade da arte. Foi elogiado como um libelo contra a estupidez humana, mas não impediu que outras Guernicas acontecessem, e a estupidez humana prevalecesse. Guernica foi apenas um aperitivo para Hiroshima.

– Somos supérfluos de várias maneiras, além da que decretou o Prado. Todo artista é supérfluo.

– Menos o Velázquez.

– Menos o Velázsquez.

– Sabe, senhor Goya, muita gente já nos comparou, e notou como nossas trajetórias são opostas. O senhor começou como pintor da corte, retratando a vida alegre da aristocracia na Madri dos Bourbons e acabou doente, num exílio amargo entre pinturas negras, sozinho e esquecido. Sua trajetória foi da frivolidade para as trevas. Eu, ao contrário, fui ficando cada vez mais mundano, cada vez mais frívolo. Comecei como um artista de vanguarda incompreendido e acabei como uma celebridade internacional, uma das pessoas mais fotografadas do mundo, fazendo arte instantânea como criança. Apesar de velho, ainda tenho saúde e tesão pela vida. Agora mesmo, acabo de comer um peixe maravilhoso feito pela minha atual mulher. A sétima, se não perdi a conta.

– Por sinal, senhor Picasso, obrigado por sonhar comigo na sua sesta. A única maneira que eu tenho de voltar à vida, nem que seja só para rever As Meninas, é na imaginação dos outros. E, não sei se o senhor notou, no seu sonho eu não sou surdo, como fui durante grande parte da minha vida. Muito obrigado.

– Olhe, senhor Goya! Que estranha luminosidade emana do quadro do Velázquez! O senhor não está vendo?

– Não, eu...

– Parece o sol. É a luz de um sol!

Picasso acorda com o sol na sua cara. Pensa em chamar a mulher para lhe trazer um chapéu, mas não se lembra do seu nome.

Verissimo, como sempre fantástico, no Zero Hora de ontem

thunder

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