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quarta-feira, 14 de outubro de 2009

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CANTIGA DE ACORDAR

Noite dos pais pegarem cinema, o avô bota o neto na cama. Apaga a luz, deixa só a do abajur, dizendo que vai contar uma história, mas não consegue lembrar de nenhuma nem inventar coisa alguma, então cantarola: atirei o pau no gato-tô...
_ Conhece esta cantiga, menino?
_ Conheço, vô. Só não entendo por que atirar o pau no gato. Que que o gato fez?
_ Não sei, nem conheço o tal gato!
_ Então pra que atirar pau nele?
O vô suspira e encontra um caminho no verso seguinte:
_ Mas o gato-tô não morreu-reu-reu!
_ Então, vô, quer dizer que atiraram um pau tão forte que era pro gato morrer?
O vô volta a suspirar, dizendo pois é:
_ Tanto que Dona Chica-cá 'dmirou-se-sê, do berrô, do berrô que o gato deu!
_ Mas gato berra, vô?
O vô pensa no que falou a mãe, não se deve ensinar nada errado para criança, então diz que gato solta, sim, uma espécie de berro quando é atacado:
_ A onça urra, o gato berra.
O neto declama:
_ Onça urra, cavalo relincha, boi muge, ovelha bale, cabrito berra... e gato também berra, vô?
O avô promete que amanhã vai pesquisar na internet, não pensava que uma simples cantiga de ninar fosse dar tanta confusão.
_ Mas não é cantiga de ninar, vô, é de matar.
Ficam em silêncio, até o neto perguntar baixinho:
_ A Dona Chica-cá é gaga, vô?
O vô diz que não, isso é só pra cantiga ficar mais divertida, mais...
_ Mais boba, né. A mãe diz que as crianças do tempo dela eram bobas comparadas com as crianças de hoje.
_ É, é - o vô concorda fime - As crianças daquele tempo ouviam uma cantiga de ninar e ninavam, enquanto as de hoje...
O neto fala mais baixinho:
_ Mas o pai diz que não é pra gente engolir nada que não goste...
O vô silencia olhando o abajur, mas o abajur não ajuda em nada, então diz que vai mudar a cantiga:
_ Atirei carne pro gato-tô...
_ Melhor jogar ração, vô, senão o gato faz cocô fedido.
_ Ora - o vô fala irritado - Gato é felino, veio das matas, onde ainda existe a Jaguatirica, comendo carne, sim senhor! Isso de criar bicho com ração é coisa de gente de apartamento, que não tem terra pro bicho fazer cocô, gente que nem sabe se melancia dá em trepadeira ou em árvore.
_ Nem uma coisa nem outra, né, vô, melancia esparrama pelo chão que nem batata.
_ E criança devia dormir com a mão no coração em vez de ficar discutindo!
_ Eu tava conversando, vô, quem tá discutindo é o senhor!
O vô suspira, apaga o abajur, fala na escuridão:
_ Você tem razão, eu sou um vô bobo.
A escuridão parece concordar até o menino falar que não:
_ Você é meu melhor vô.
Depois de um tempo, o vô fala com a voz molhada - Boa noite, rapaz! - e só depois de fexhar a porta é que lembra:
_ Mas o outro avô dele já morreu!...
Abre uma fresta da porta e olha o neto sorrindo de olhos fechados.

Domingos Pellegrini, no Caderno G da Gazeta do Povo de 14/06/2009

thunder

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